RESPOSTA DE UM JUDEU NORDESTINO
 (MARRANISMO)
 Meraldo Zisman
... De quando sou interpelado por algum amigo qual a minha  posição do conflito entre Palestinos e Israelenses... (Continuação)
 Pretendo, neste artigo-reposta referir brevemente sobre marranismo no Brasil.  Não devemos esquecer que essa histórica toda - dessa estranha Gente da  Nação - foi alevantada pelo historiador pernambucano  José Antônio Gonçalves de Mello, um dos poucos intelectuais que inauguraram o  conhecimento do fenômeno marrânico na moderna historiografia brasileira,  desnudando o preconceito antijudaico e restabelecendo a importância da  contribuição dos judeus-portugueses, enquanto muitos de seus contemporâneos  estereotiparam o hebreu em suas obras clássicas, sobre a gênese do povo  brasileiro, tentando esconder seus preconceitos através de teorias  pseudocientíficas de superioridades raciais. Como se, no gênero humano, houvesse  raças puras e raças impuras ou superiores e inferiores.
 Definindo o significado e a etimologia do vocábulo marrano:  Diz-se do judeu ou mouro que, embora professando abertamente o Cristianismo,  para evitar perseguições da Inquisição, permanece fiel à sua religião de  origem.  Muito embora o verbete marrano esteja dicionarizado  pejorativamente como sinônimo de porco, sujo, asqueroso, excomungado, maldito e  até de gado-ruim, no Rio Grande do Sul, prefiro, por razões  emotivo-sentimentais, tomá-lo como vocábulo originário do hebraico, mar  (amargo) e anussim (forçado). Forçado a deixar  amargamente a religião de seus ancestrais e que, agora, muitos  de seus descendentes desejam tornar ao seio de Israel.
  Por sinal determinados vocábulos brasileiros são exemplos de nosso  sincretisano. Por exemplo:
  "OXALÁ" é vocábulo de dupla acepção e  origem:
 Quando escrita com inicial "O" maiúsculo significa divindade afro-brasileira,  toma o lugar de Oloru (o espírito supremo). Sua cor preferida é o branco. Seu  dia de devoção é sexta-feira, e os animais sacrificados em sua homenagem são  cabras e pombos brancos.
 Na correspondência entre orixás e santos católicos, é identificado com Nosso  Senhor do Bonfim, na Bahia, ou com o Padre Eterno, Jesus Cristo e, raras vezes,  com o Divino Espírito Santo.
 O outro significado de oxalá (com, ‘O', minúsculo) é uma  interjeição de origem árabe (semita), cujo sentido significa queira Deus;  prouver a Deus: exprime o desejo de que certa coisa suceda; tomara que  sim!
 Oxalá tudo saia como planejamos!
 Essa diversidade de interpretação do português falado no Brasil é exemplo da  amálgama de concepções heterogêneas que se sedimentaram na formação do  brasileiro, não o brasileiro do Eça de Queirós: o português que fez fortuna no  Brasil e voltou para Portugal abonado, porém permaneceu um mal-educado, é entre  nós o tipo de caricatura mais francamente popular. Conferir em Farpas, fevereiro  de 1872. 
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 Considerando que as nossas origens marrânicas jaziam soterradas pelos  poderosos de plantão e outros motivos mais, não me cabe, no momento,  aprofundar-me.
  O rio marrânico de nossa formação, apesar de soterrado pelo antijudaísmo,  não importa se por razões religiosas ou, mais tarde, raciais, como na ditadura  do Estado Novo, permaneceu, apesar das discriminações, irrigando nossa  formação,  ajudando a aplainar as diferenças das nossas diferentes etnias,  formadoras de nossa gente. 
 Não podendo mais, em pleno fim do século 20 e início do XXI, alguns dos  nossos pesquisadores, solapar a verdade de o fato histórico ser contido,  resolveram desbravar, com sua pesquisa moderna e menos arraigada ou limitada,  pois, como diz o Talmude: A verdade como o azeite sobe a água que camufla os  mentirosos ou bajuladores do Poder como lamparina para iluminar os nossos  passos. Eis que explode, como a força da água represada, em numerosos trabalhos  histórico-científicos. Oxalá continue emergindo, mais e mais, e queira Deus  deixe os círculos acadêmicos, ganhe o mundo, ganhe as ruas, as esquinas e as  praças, antes que algum brasilianista dos states dela se  apodere.
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 Marranismo à brasileira
 Diferentes dos marranos que se fixaram em outras plagas "deste mundo vasto  mundo", foram os portugueses, cristãos-novos - cristãos-velhos, os achadores do  Brasil.  A demografia de Portugal, na época dos descobrimentos, era constituída  por um milhão de católicos e 200.000 judeus! Bastaria tal fato para explicar a  importância numérica dos judeus na constituição de nossa gente e país.
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 Aliás, muito antes das viagens dos Descobrimentos, o infante D. Henrique  convocou o judeu Jehuda Cresças, então vivendo nas Ilhas Baleares, personagem  também conhecido como Jácome de Majora, cognominado El judio de lãs  Brújulas, para chefiar, fazer parte do corpo docente da Escola de  Sagres, e foram tantos outros: astrônomos, navegadores, matemáticos,  lingüísticos de origem semítica que traçaram e colaboraram com o Ciclo dos  Descobrimentos, cuja culminância, para Portugal, foi a Descoberta do Brasil.  Nomes tantos que seria enfadonho enumerar.
 Esses novos católicos-marranos-portugueses aportaram a Terra da Santa Cruz  como descobridores, pioneiros, colonizadores, governadores, para fundar uma Nova  Nação em um Mundo Novo. Já na frota do Almirante Pedro Álvares Cabral, viajaram  eles como conselheiros, especialistas e muitos marinheiros judeus ou  cristãos-novos fizeram parte da esquadra do Almirante nascido em Belmonte, lugar  conhecido internacionalmente pela prática do cripto-judaismo, até os dias de  hoje.
 Cito alguns integrantes da frota cabralina pela relevância:
 Mestre João, astrônomo e que tinha, como missão, testar instrumentos náuticos  criados por outro judeu, Abrahão Zacuto; Pedro Nunes navegador, Gaspar de Lemos  ou Gaspar da Gama, capitão de navio, intérprete e considerado, por muitos  historiadores, co-descobridor do Brasil.
 Na verdade, em nenhum momento de nossa História ou mesmo na Pré-História da  Descoberta do Brasil, os judeus, convertidos e os não-convertidos, deixaram de  fazer parte do feito-mor lusitano: o achamento do Brasil. Posso  asseverar que inexiste país onde a contribuição dos cristãos-novos, marranos,  convertidos à força ou por vontade própria, foi tão evidente e perene como na  formação brasileira.  Nas levas dos denominados degredados e delinqüentes, o  crime maior era o de judaizante (judaizar é observar e praticar a lei dos  judeus).
  Na Igreja, mesmo entre seus catequizadores, vieram muitos cristãos-novos em  seus quadros, como é o caso emblemático do Padre Anchieta, descendente de  judeus.
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 Em Portugal, estavam ameaçados, por "todos os lados", pela Inquisição. Esses  fugidos ou refutados e amedrontados, constituíram a espinha dorsal da nossa  europeização e colonização, apesar do longo braço da Inquisição, de cujos  rigores não escapou um dos maiores oradores sacros: o Padre Antonio Vieira. 
 Apesar de saber que qualquer forma de colonialismo é deletéria (não há bom  colonizador nem neocolonizador honesto), Portugal legou-nos muitas coisas boas.  Uma das mais belas línguas do mundo, a nossa dimensão continental: a maioria dos  bandeirantes era de origem cristã-nova. O ouro branco do açúcar era tecnologia  dominada pelos judeus-portugueses, a mineração e o ciclo do ouro em Minas  Gerais, a floresta amazônica, o que encetou a vinda de milhares de judeus de  Marrocos e de outros lugares da África do Norte, para tomar parte no ciclo da  borracha, criando uma neodescendência de judeu mameluco, que ainda não foi  suficientemente explorada como outras escondidas riquezas da floresta, o  pau-brasil, do qual Fernando de Noronha, essa misteriosa figura de donatário,  empreendeu o início do desmatamento nacional com o mercado do pau-brasil. Sem  dúvida, era um cristão-novo!
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 A continuidade territorial
 Quanto aos mistérios dos costumes desses sertões brasileiros, tão grandes e  tão assemelhados, podem-se explicar pela mobilidade dos cristãos-novos no Brasil  Colônia.
 Apesar de encontrarmos famílias européias portuguesas, radicadas durante  gerações nas mesmas regiões, de um modo geral, a população branca era de  descendência cristã-nova e, apresentava uma grande instabilidade. A vigilância  constante a que estavam expostas por parte dos agentes inquisitoriais, muitas  vezes, impedia a sua radicação.
 Sem esquecer que foram também os interesses econômicos dos judeus-portugueses  que os levavam a residir temporariamente em vários lugares e mantinham uma união  secreta entre familiares, cristãos-velhos, livres-pensadores, formando um  continuum de casualidades de crenças, liberdade impossível de ser pensada ou  praticada na velha Sefarad (palavra hebraica que designa a  Península Ibérica). A Inconfidência Mineira leva muitas características desses  tipos de associações.  Os poetas, ah! os poetas, sempre chegam primeiro que os  cientistas!  Minha Pátria é Minha Língua (Fernando  Pessoa). 
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 Os marranos de Portugal fugiram para o Brasil,  principalmente.
 Aqui, deitaram suas raízes, não para enriquecer ou, como dizia a maioria dos  imigrantes europeus: fazer América, chegaram para ficar.
 Assim como os negros escravos não desejam tornar à África, nem o japonês ao  Japão, fizeram deste país tropical a sua pátria. Misterioso encanto...  a Terra  brasilis! Não vamos esquecer, por favor, os índios - verdadeiros proprietários  (e o que deles restou). Devem ser respeitados os poucos remanescentes, nas suas  riquezas culturais e ecológicas.  Lamentavelmente, somente agora, em 2006, temos  o primeiro índio doutor!
 Voltando ao marranismo à brasileira, foram os cristãos-novos  ou marranos que desbravaram as selvas, cultivaram a terra, apresaram índios,  guerrearam os jesuítas, foram homens totalmente diferentes dos judeus de origem  ashkenaze: judeus de fala iídiche, oriundos dos países da Europa Central e  Oriental ou dos sefardins, descendentes dos primeiros israelitas de Portugal e  da Espanha, expulsos, respectivamente, em 1496 e 1492, que se dispersaram pela  Itália, Holanda, França, norte da África, Levante e outros lugares do Mundo.
 Falar dos cristãos-novos, generalizando sua atuação e sua mentalidade, tem  levado a uma concepção errônea do que foi o fenômeno marrano brasileiro. Antes  precisamos de ungüentos para cicatrizar a chaga da escravidão, a vergonha da  Inquisição e renovar o que nos ensinou o Genocídio dos povos  indígenas. Para isso, conclamo a nossa elite intelectual...,  principalmente a nordestina, a trabalhar para resgate do nosso passado.
 Pensar que, em plena crise da Violência e do Crime Organizado, o governador  do Estado de São Paulo (2006), Cláudio Lembo, diga:
 O Brasil é o país do duplo pensar. Conhecemos a Inquisição de 1500 até 1821.  Então você tinha um comportamento na rua e um comportamento interior, na sua  casa. Isso é o que está na Sociedade hoje. Essas pessoas estão falando apenas  para o público externo. É um país que é dúbio, sem mencionar as chagas da  escravidão e a matança dos índios.
 Em momento algum, aceito tal declaração pondo em perigo nossa frágil  Democracia. Aceito, com restrições, tal desabafo como aviso aos nossos  historiadores.  Urge que nossos antropólogos, sociólogos e geógrafos façam, e  divulguem ao povo um melhor conhecimento de nossa historiografia: da  miscigenação e igualdade entre as diversas etnias formadoras de nossa gente.
  O Professor. Avi Gross, especialista em Judaísmo Português e Espanhol e  Marranos do Departamento de História Judaica, na Universidade Ben-Gurion em  Beer-Sheva, no deserto de Neguev, afirma ser a concentração de convertidos à  força mais numerosa nos estados do Nordeste brasileiro, principalmente  Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. 
 Em época tão tumultuada, é sumamente pertinente propagar a Nostra Aetate:  Sobre a Igreja e as Religiões Não-Cristãs (Declaração do Concílio Vaticano II -  ano de 1965):
 Hoje, que o gênero humano se torna cada vez mais unido, e aumentam as  relações entre os vários povos, a Igreja considera mais atentamente qual a sua  relação com as religiões não-cristãs. E, na sua função de fomentar a união e a  caridade entre os homens e até entre os povos, considera primeiramente tudo  aquilo que os homens têm de comum e os leva à convivência.
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 Acredito que, quando um povo está buscando se conhecer e não se envergonhar  da suas raízes, passa a ser exemplo de concórdia para o mundo. Mundo esfacelado  pelas guerras, pelos terrorismos de todos os naipes e os homens-bomba: terão  suas chamas autocriminosas extintas pelo exemplo do novo homem brasileiro.
  Daí lembro, aos meus patrícios, que a contribuição que une a nossa nação à  saga do povo judeu é muito importante para entendermos a gênese do povo  brasileiro. Porém, muitas vezes, fico pensando nessa herança maldita da  Inquisição e em certos comportamentos do nosso homem interiorano, maioria das  vezes, um valente, silencioso e reservado. Impossível saber o que pensa. Do  não-parecer. Da economia. Do não-ostentar. Das festas e da religiosidade  expostas, essas, sim, bastante às vistas. Dos postigos sempre cerrados e  protegidos dos olhos dos curiosos. Falar o menos possível, medir o que se diz.  Ao prestar um serviço, dizer com insistência:
 - Desculpe qualquer coisa! - Como se desejasse pedir desculpas por algo que  nunca fez. Evitar qualquer deslize é seu cuidado maior. Algo que poderia ser mal  interpretado e, depois, servir da acusação no tribunal do Santo Ofício. Ninguém  pode confiar em ninguém. Acusações podem surgir do nada. Não faltar à missa aos  domingos, não perder uma procissão, andar na frente, comungar e acatar a palavra  do pároco.  Foram 300 anos da Inquisição, quinze gerações, e isso fica gravado  no inconsciente coletivo de um povo. É a herança cultural da Inquisição. 
 Lembro a todos que a palavra religião vem do latim religare,  que é a forma de uma pessoa se ligar a outra. Assim é como vejo o Marranismo  Brasileiro, uma maneira de união para a criação do novo homem do século XXI.  Certamente, esta seja uma das missões que cabe ao intelectual brasileiro:  divulgar!