segunda-feira, 2 de março de 2009


RETIRADO DO LIVRO -- PEQUENOS ESCRITOS DE UM MÉDICO
EDITORA LIVRO RAPIDO www.livrorapido.com.br

SÓCRATES

A vida me ensinou a nunca desistir
Nem ganhar, nem perder, mas procurar evoluir.
Podem me tirar tudo que tenho
Só não podem me tirar às coisas boas que eu já fiz
para as pessoas que eu amo
.



Pelo título, não pense que estou me referindo ao filósofo grego e, muito menos, ao craque futebolístico, mas, sim, ao meu cachorro da raça Labrador, ao qual batizei de Sócrates. Comprei-o em um canil, lá pelas bandas de Aldeia, arrabalde da Região Metropolitana do Recife, especialista em criação dessa raça e recomendado pelo meu confrade médico veterinário e engenheiro agrônomo Paulo Ponce de Leon Filho, que é o seu padrinho.

Originário, o meu Sócrates, de uma ninhada de cinco filhotes. Três deles, antes de nascer, foram adquiridos pela polícia de Brasília. Sobraram dois: um preto e o outro cor de chocolate. Pensei: Qual dos dois eu levo, o preto ou o chocolate? Indeciso fiquei! Enquanto pensava e me decidia qual dos dois filhotes levava, uma criança se aproximou e exclamou: - Papai, quero o chocolate!

O filhote preto saiu andando, e sua barriga era muito sem jeito. Andava como se fosse com a carroceria troncha de um caminhão (de bandinha). Balançava de um lado para o outro, o seu andar era diferente. Tinha jinga de sambista. Corri atrás dele. Por mais que corresse, ele se afastava. Parava e olhava para trás, me desafiando. Olhava para mim, virava o focinho para frente e continuava a sua marcha... Alcancei-o, finalmente, enquanto seu olhar maroto dizia tudo que seria a personalidade do meu novo companheiro. Aninhou-se nos meus braços e estava selado o pacto da nossa amizade. A escolha passou de eliminação para a afeição, que permanece entre nós, até hoje. Naquele instante, senti os verdadeiros valores da vida. Aos 70 anos, tinha meu cão. Meu sonho de criança foi realizado.

Sócrates me ensinou muita coisa. Pensava que cachorro era parecido com os homens. Ledo engano! Para começar, o cão não sabe mentir nem fingir: O rabo o denuncia. O cão, como chamam os criadores de raça pura, é incapaz de dissimular seus sentimentos. O rabo o acusa. O faro o faz ter certeza de suas escolhas e também denuncia os seus anseios. Não perde tempo para pensar. Ser cachorro é ser existencialista. Tudo é atual, momentâneo, impulsivo, A vida para ele é o que acontece; as suas investidas são em direção das vontades vindas das entranhas. Eclodem; num gesto repentino, inesperado, acerta uma lambida em meu rosto ou apanha um chinelo ou meias para escondê-las nos locais mais esdrúxulos. Quer sempre brincar, sabe quando estou mais triste ou menos triste. Respeita a minha dor e reconhece quando o dono está chateado. Fiquei com Sócrates, o preto, e não me arrependo. Confio no sentimento. Acredito em amor à primeira vista . As escolhas, grandes escolhas que fazemos na vida, são inexplicáveis.

Deixando de lado a filosofia, voltemos aos primeiros momentos do nosso encontro. Enquanto o segurava nos meus braços desajeitados, sentado no lugar do carona, minha mulher dirigia o carro. O velho, que abria e fechava a porteira do canil, disse:

- O senhor será muito feliz com ele. - E sou! Enquanto segurava o futuro amigo fiquei pensando qual o nome que daria àquele cãozinho.

- Sócrates foi como o batizei. Como seu xará filósofo, não escreve e terá a vantagem de ser um Sócrates sem um Platão para tomar nota de seus ensinamentos. Tem igualmente a vantagem de ser bonito e alegre. Vivi em nosso pequeno apartamento onde resido, apesar dos avisos dos entendidos que apartamento não é para cachorro daquele porte. Quando passeia, os transeuntes, apesar de atemorizados pelo seu tamanho, chamam a atenção para a sua beleza. Gosta muito de perambular pelas ruas, e as crianças adoram-no. Começou por destruir o modesto mobiliário da minha morada e, o pior, a exigir de mim e da empregada dedicação constante.

Quando posso, levo-o para a casa da praia, solto-o no grande terreno: corre muito, brinca, toma banho de mar, faz muita festa, fica alegre: Livre. Solto. Correndo. Sem coleiras ou enforcadores. Penso em o deixar lá. Logo. Acabado a novidade, volta para mim com um palmo de língua de fora, como se dissesse:

- Prefiro brincar com você. - E fica deitado bem junto aos meus pés. Sem mim, fica muito triste, apesar da liberdade, da areia, do gramado, dos pássaros, das aves e do mar de onde veio quando volto para o apartamento, que julgo ser para ele uma prisão. O pequeno apartamento fica menor sem Sócrates. Apeguei-me a esse animal como a ninguém na minha longa jornada. Conheço-o como a um filho querido. Recordo-me do tempo em que vivi sem Sócrates. Passei de não ser mais um velho solitário. Quando chego a casa, meu cão me faz festa. Sócrates foi crescendo. Quando completou dois anos de idade era impossível alguém me visitar. Lambia, ladrava, fazia uma festa para conhecidos e desconhecidos. Basta dizer que, na praia de Maria Farinha, é conhecido como Meninão, e os praieiros pensavam que o seu nome era em homenagem ao atleta. O único Sócrates "gente" que conheciam.

É um ser cordial e muito cuidadoso com seus afetos. Nas minhas angústias, penso sempre nele. Tem me recompensado as agruras da vida que passei e ainda vou passar. Com Sócrates, aprendi a lição: "Cada novo amigo que ganhamos na estrada da vida nos enriquece pelo que nos revela de nós mesmos". Nenhum homem conseguiu falar o que ele late, e eu não compreendo o seu falar:

Ser cachorro é pronunciar palavras de afetos que não fingem, escapando-se apenas em redemoinhos de latidos que melhor e mais dizem que a voz humana. É um au-au de amor, de aviso, de cuidado e de amizade. Muda o tom, quando algo está errado. Não sabe mentir. Quando ficava com o caseiro, sentia muita falta dele, e ele de mim (imagino eu). Deve ser verdade, pois deixava de comer. Não podemos viver um sem o outro. Tenho para mim que, em nossa amizade, existe uma dificuldade, meu cachorro vive 15 a 18 anos, terei que viver mais tempo para não deixar Sócrates por aí. Sabe qual a idade do meu cachorro? Dois anos! Tenho que viver mais do que calculava. Vou tentar. Não se deixa um amigo desses desamparado e muito menos solitário. Pobre de espírito é quem cunhou a frase: - Depois dos quarenta anos, não se faz mais amizades. Eu fiz.

A sabedoria de Sócrates vai me ajudar e ensinar. Sócrates é o cachorro por inteiro, global, completo feito uma única peça. Monobloco. E assim grudei-me ao cão. Meu cachorro! Como havia dito o velho que abria e fechava o portão do canil: - O senhor será muito feliz com ele. E sou!

Mas apesar dos maus olhos dos vizinhos, dos medos que o labrador preto causava ao descer o elevador do prédio, as coisas foram engrossando.

- Ele morde?

- Não, não morde - respondo.

Quando não convencidos, os elementos da classe social, meus companheiros daquele prédio-caixão, maioria da classe social média-baixa, passaram a ter medo de meu amigo. Eu somente tinha como argumento a pergunta:
- A senhora não vê a novela da Globo?

- A! sim! - respondia-me o atemorizado vizinho. Este cachorro é que é guia de cego.
E algum outro, ironicamente, disparava: - Ele, por acaso, tem dentes de borracha?

O pobre do Sócrates ficava sem entender nada daquela conversa da gente e queria brincar com suas enormes patas com o atemorizado personagem. Na rua, era a mesma coisa. Pensei em colocar uma plaqueta em seu pescoço, o que causava muito temor, quando ele comigo dava um passeio: Este cão é um labrador.

Ficava triste quando alguns transeuntes indagavam. E eu respondia, após a explicação de novela global.

- Da mesma raça do da novela da Globo. Serve também para a companhia de idosos. Não morde! Gosta de criança! Não ataca ninguém! Não me deixe sem ele, por favor, é minha melhor companhia e meu melhor amigo!

Mas, Sócrates começava a amedrontar os senhores e senhoras de Atenas, apesar dos meus esclarecimentos. O pior era o número de empregadas que entravam e saíam da minha casa. Nenhuma suportava descer três ou quatro vezes por dia com o cachorro. Eu cismava com todas. Será que estão maltratando Sócrates na minha ausência? Pensei em "dar-lhe fim". Ninguém queria aquele belo animal. A civilização do apartamento não compreendia nada. Tentei a Polícia: cão farejador, detector de drogas. Ouvi dizer que eles viciam os animais e, depois de um certo tempo, os matam. Descartado fazer o meu filósofo sentar praça. Não poderia imaginar, meu Sócrates, criado como meu filho, tendo tal fim. Descobri um site da Internet que adota cachorro. Anunciei. Depois de esperar muito, veio a proposta de uma possível adoção por um senhor do Rio Grande do Sul. Não gostei! Era muito longe! Nunca mais veria Sócrates.

Não sei o que vou fazer. Somente me resta tomar cicuta, nós dois, como seu xará. Porém, o cachorro Sócrates não está ensinado a desviar a nossa juventude. Não é casado com a Xantipa, e o dinheiro da feira, e muito menos é filho de uma parteira. Quem compra a sua ração sou eu, e ele somente acorda à noite quando o seu faro sente odor de estranhos. Em Filosofia, Sócrates tinha que ensinar aos seus discípulos o conhece a ti mesmo, enquanto o meu amigo já nasceu conhecendo pelo faro. Não, meu amigo, vou agüentar vivo, pena é: você deverá viver mais do que eu. Que pena de deixá-lo sozinho! Espero que não! Com ele, passei a conhecer melhor a mim mesmo.

Um comentário:

  1. Eu adorei a história do "Socrates", só agora vi como incomodo os meus vizinhos que têm cão. Sempre faço essa pergunta no elevador: Ele morde? Nunca mais, por mais medo que tenha do cachorro,vou perguntar uma coisa dessa, quem sabe o meu vizinho, o dono do cão, não é um grande ser humano, igualzinho ao Dr. Meraldo. Conheço Dr. Meraldo desde 1975, foi o pediatra do meu primeiro filho, Carlos Leonardo Vilar. De mim, nasceram mais dois filhos: Carlos Eduardo e Karla Sandra,também foram acompanhados por ele na infância.Era uma relação "mãe,filho,pediatra", talvez pela ansiedade que ataca uma mãe que vai ao pediatra com seu filho no braço,não tenha tido a oportunidade de ver, atrás do jaleco branco, este ser humano maravilhoso, cujas qualidades acabo de descobrir nas postagens deste Blog.

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